Ele há coisas...
Este post poderia ter outro título como: Depois de Mariano Gago, Jorge Coelho, etc..., lá apareceu mais um a usar a peneira para tapar o sol.
António José Saraiva, assina este interessante artigo no blog do jornal Sol, que vale sim, pela descrição histórica do que foram e por onde passaram as nossas actuais elites. Ou seja, os 2 primeiros terços do texto, porque as conclusões depois de se escudarem em antigos hábitos e prácticas que não se coadunam com a actualidade, exalam um forte e profundo odor a eufemismos. A ler, portanto, a seguir:
Os engenheiros técnicos
No tempo em que eu fiz a escola primária, os miúdos dividiam-se em duas categorias: os que, uma vez concluída a 4.ª classe, deixavam de estudar para irem trabalhar e ajudar os pais nas despesas da casa, e os que continuavam os estudos. Estes, por sua vez, ainda se dividiam em dois grupos: os que iam para o liceu e os que iam para a escola técnica. Os que iam para o liceu eram os filhos dos ‘ricos’, os da escola técnica eram os ‘remediados’. Claro que os ‘ricos’ quase nunca eram ricos, pertenciam à classe média ou mesmo à pequena burguesia, e os ‘remediados’ muitas vezes eram pobres cujas famílias faziam das tripas coração para os filhos poderem estudar.
Os que seguiam o liceu cumpriam sete anos – e depois tinham pela frente a faculdade. Os que iam para as escolas técnicas cumpriam cinco – e daí transitavam para os institutos industriais ou comerciais.E é aqui que começa verdadeiramente a nossa história.
Ao terminarem os cursos nos institutos industriais ou comerciais, os formandos ficavam com o título de ‘agentes técnicos’, ‘regentes agrícolas’ ou ‘contabilistas’.Devo dizer que, com honrosas excepções, estas pessoas viviam cheias de complexos. Porque eram tratadas por ‘senhores engenheiros’ (os agentes técnicos e os regentes agrícolas) ou por ‘senhores doutores’ (os contabilistas), mas sabiam que não eram nem engenheiros nem doutores. No máximo, eram ‘engenheiros de segunda’ ou ‘doutores de segunda’. Mas também, convenhamos, não dava jeito nenhum tratá-los por «senhor agente técnico» ou «senhor regente agrícola». Além de que, nestas designações académicas, estava presente um estigma de classe. De casta. Os agentes técnicos, os regentes agrícolas e os contabilistas eram em geral oriundos de famílias cujos pais, como vimos, não tinham posses para mandarem os filhos para o liceu. Eram os ‘filhos dos remediados’. E essa ideia de casta magoava, representava um ferrete para toda a vida.
Assim, a partir de certa altura – no tempo de Marcello Caetano –, quando um sopro de democratização atravessou o país, os agentes técnicos e os regentes agrícolas passaram a ser oficialmente designados por ‘engenheiros técnicos’. E, deste modo, a divisão entre verdadeiros e falsos engenheiros atenuou-se. Eram todos engenheiros – embora uns tivessem no título um pequeno acrescento, na maior parte das vezes omitido, que era a palavra ‘técnico’.
Conheci relativamente bem esta realidade, porque a minha mãe foi durante muitos anos professora de um desses estabelecimentos onde se tiravam cursos médios – o Instituto Comercial de Lisboa, à Rua das Chagas –, onde foi professora de alguns jovens que viriam a tornar-se célebres e a ter um importante papel no futuro do país: Cavaco Silva, Ernâni Lopes, Eduardo Catroga, Mário Castrim (aliás, Manuel Nunes da Fonseca).
Esse mal-estar que atingia os engenheiros ou os economistas ‘de segunda’, mesmo depois da emenda legal que lhes alterou o nome, levava muitos deles a inscreverem-se posteriormente na universidade para se tornarem ‘verdadeiros engenheiros’ ou ‘verdadeiros economistas’.Foram os casos, por exemplo, de Cavaco, Ernâni e Catroga – que, depois de serem alunos da minha mãe, pediram a equivalência a Económicas e fizeram no Quelhas as cadeiras que lhes faltavam para serem mesmo ‘senhores doutores’.
Foi mais ou menos esta a história de José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa, que tanta tinta tem feito correr e afinal se resume a muito pouco.Fez o liceu na Covilhã, como os meninos ‘ricos’. Mas o encerramento, a seguir ao 25 de Abril, da Faculdade de Engenharia do Porto, onde o pai o tinha matriculado, levou-o a inscrever-se num curso médio que lhe dava apenas direito ao título de ‘engenheiro técnico’. Assim, mais tarde, como milhares de outros engenheiros técnicos, Sócrates sentiu necessidade de ter um curso superior, de usar o título de engenheiro sem complexos por não o ser verdadeiramente – e matriculou-se numa universidade que, por não ter grande exigência, não o obrigava a muito trabalho: a Universidade Independente.Deram-lhe as equivalências que entenderam dar (justas ou injustas), fizeram-lhe os exames que entenderam fazer (concedendo-lhe mais ou menos facilidades) – e Sócrates lá ficou engenheiro sem a palavra ‘técnico’ à frente.
À semelhança de muitos outros agentes técnicos, regentes agrícolas e contabilistas por esse país fora, José Sócrates quis limpar essa ‘nódoa’ do seu passado, esse ferrete que significava para quase todos uma marca de classe.Isso constituirá um crime?E que necessidade há de remexer na ferida, de lhe atirar à cara que antes não era bem engenheiro e hoje o é por favor?No fundo, aqueles que atacam Sócrates fazem-no ou por uma mal disfarçada ‘superioridade de classe’ – como quem diz: tu não és um dos nossos – ou por um certo sentimento de inveja – por não se terem formado e não quererem que Sócrates passe por ser mais do que eles.
A mim, a licenciatura do primeiro-ministro não faz nenhuma confusão. Admito que tenha havido aqui ou ali uma certa facilidade. Mas isso terá importância para encher páginas e páginas de jornais ditos ‘sérios’? E quantos alunos se formaram em universidades privadas e públicas sem terem o mínimo de capacidades para serem doutores ou engenheiros?Compreende-se, por todo o envolvimento social, que Sócrates tenha querido ter um canudo. Mas isso não o faz melhor nem pior primeiro-ministro. E quantos têm um canudo que ninguém contesta e não serviriam sequer para dactilógrafos da presidência do Conselho de Ministros?
Publicação: Saturday, April 28, 2007 10:00 AM por JAS