Eurico O Presbítero
Nas férias de 2005, andou pelas minhas mãos “Eurico O Presbítero” de Alexandre Herculano, da colecção livros de bolso Europa-América. A leitura de Herculano já vinha de “O Bobo”, muito semelhante a esta ao basear-se em factos históricos, desenvolvendo daí as respectivas narrativas mais ou menos ficcionadas.
Nos dias de hoje, com o romance histórico "a rodos", pode parecer estranho pegar numa obra de Herculano, porque um livro editado em 1844, à primeira vista, parece não cativar perante tanta oferta. Porém, assim não foi. Para além da minha curiosidade sobre o período histórico incidente, aproveitei em simultâneo para rever e confrontar, o estilo do escritor com o de outros dois grandes génios literários do Séc. XIX, são eles Eça e Almeida Garret, sendo este último seu contemporâneo da primeira metade.
A escrita de Herculano não tem a mesma frescura que a de seus pares. Em Garret, e sobretudo em Eça, é notada uma maior abertura à sociedade patente nas suas críticas. Alexandre Herculano já se conota com um estilo menos expansivo, onde predomina o cunho austero e misantropo do historiador-romancista.
Nesta obra em particular, o livro é pequeno na sua dimensão física mas grandioso na sua dimensão Histórico-Romântica, não tivesse o erudito Herculano dedicado parte da sua vida à história de Portugal. O convite para bibliotecário da Ajuda, com acesso a imensos documentos históricos veio reforçar a vocação, devotando Herculano aos estudos histórico-literários de obras antigas.
Outras obras como as do francês Vítor Hugo, em conjugação com o despontar do movimento romancista no início séc. XIX “importado” tardiamente para o país, e as convulsões políticas que se sucediam, das quais se desligou, incitaram no escritor o culto da escrita romanesca alicerçada nos primórdios da história nacional, publicando algumas obras entre as quais este romance sobre Eurico, situando-o na época da ocupação Visigoda da península Ibérica.
A meu ver, da herança literária de Herculano - Eurico o Presbítero - é uma monumental evocação e tributo à atribulada ocupação Goda que antecede as origens da nossa nação. Demonstrando nestas páginas, com largos traços de ficção, o grande vulto que se tornou em meados do séc. XIX, no panorama cultural e político nacional, produzindo uma vasta obra literária onde constam as “Lendas e Narrativas”, “O Monge de Cister”, “A Harpa do Crente”, "O Bobo", etc...
A NARRATIVA
No livro em apreço, a narração gira em torno de Eurico, Tiufado (1), Gardingo (2) e Presbítero, que assim vivera a sua vida por ordem crescente cronológica. O autor intitulou nesta obra, Eurico como Presbítero, dando ênfase ao celibato que prendia a vida do pastor da paróquia de Carteia (sul da actual Espanha) numa existência melancólica e agoniante, sem cor nem esperança, após os áureos anos da sua juventude como gardingo nas cortes de Toletum (Toledo). Nesses mesmos limiares da realeza Goda, Eurico vira negada pelo próprio Duque, a mão de Hermengarda, a mulher com quem queria viver. O Godo vê perder então, num só golpe, a possibilidade de ver o seu grande amor correspondido em feliz comunhão com a nobre Goda. O Duque, pai desta, orgulhoso na nobreza do estatuto de Hermengarda não consentira que um gardingo fosse o destino da mão da sua descendente.
Perante o desgosto, Eurico procurou o esquecimento de tal paixão por via do sacerdócio cristão, amenizando assim a dor e o sofrimento. Nesse novo estádio conventual, refugia-se na sombra do outrora gardingo, altivo e vivaço, zelando agora pela causa religiosa e social da pequena comunidade. Todavia, homem inteligente como era, o alcance da sua visão excedia as fronteiras dessa pequena província.
De notar que o celibato não será a designação mais adequada a empregar a esta entrega solitária em cristandade, porque o que lhe deu origem não foi o voto casto a Deus como o de um padre, mas sim o desalento provocado pelo drama que o diminuiu espiritualmente.
De ora em diante nessa recolha monástica do presbitério, em ebulição de pensamentos e reflexões, Eurico antevê temores e martírios que sujeitarão a nação Goda e que ninguém tão desperto como ele o parece prever. Os longos anos de acalmia e ócio alheavam os Godos em odes e festins, atolando-os numa perigosa letargia e numa sociedade desordenada, filha da luxúria, da inveja e da disputa inconsequentes. A chama tenaz dos outrora guerreiros Godos tinha sido apagada das suas almas para vergonha dos gloriosos antepassados.
Este clima de fleuma e de um ânimo inconsequente, votava os nobres a uma vida desprendida do que o presbítero tinha como basilar: a terra que pisavam e que os seus antepassados tanto amaram pelo sangue que nela foi derramado por velhos e novos. A pátria. Pátria essa, que não estava defendida nem tampouco amada como o fora depois de conquistada ao império dos designados Romanos. Pressagiava por isso, no horizonte, o perigo da invasão dos Mouros «Não esqueceis que estas terras onde os vossos filhos vêm ao mundo, são cobiça dos Sarracenos que afluirão desde os longínquos vales da Mauritânia aos areais da Sara.» lamentava.
Porém, Eurico conservava o carácter, o vigor e a astúcia dos velhos Godos aguardando os bárbaros muçulmanos...
CONCLUSÕES
A composição da narrativa e o estilo formal que utiliza, pende sobre um tema de extremo interesse histórico, intensificado pelas notas de rodapé feitas pelo próprio, denotando um extraordinário conhecimento dos factos históricos, lugares, costumes e personagens.
As constantes divagações solitárias no presbitério, retratam a realidade de um Alexandre Herculano que por voto, se entregou às causas sociais e patrióticas superiores a quaisquer outras de foro pessoal. Voltou-se para a pesquisa histórica e literária com inspiração no movimento romântico, que no rigor da disciplina o motivava para uma vigorosa tarefa de historiador, da qual despontaram o estóico romancista e o poeta.
As evocações à Pátria Goda e aos valores perdidos, surgem paralelamente quando Herculano afina um tom crítico à sociedade Portuguesa, que, como diz, o rodeava de homens rasos conformados com a inércia que deixava a liberdade naufragar.
Além disso, Herculano introduz no conto várias personagens chave que vêm reflectir alguns dos conflitos internos da sua vida e da sociedade amorfa que o envolvia. A simbolizar a sua devoção à profissão e a crítica disfarçada à sociedade Portuguesa, surge-nos a abordagem ao amor não retribuído na figura do presbítero celibatário que medita sobre a decadência, tanto daqueles que o envolvem - a sociedade sórdida - como da sua, que vê o seu árduo trabalho, de historiador e político, cair em vão. Da mesma forma o faz com o amor purgado em penitência na figura de Hermengarda.
Já o herói de inspiração medieval utilizado por outros autores, o “Cavaleiro Negro”, que aqui derrama temor pelos árabes, personifica o castigo aos infiéis tanto à pátria como a Deus. Na actualidade de Herculano, este castigo figurado, era dirigido àqueles que tinham como desígnio principal o interesse particular, e não o colectivo nacional.
Pessoalmente, esta foi a personagem que mais me cativou, pelas magníficas descrições dos cenários onde combateu, como pelos relatos da sua tenacidade. Desde logo o associamos a um semi-deus, símbolo de uma resistência indomável e empreendedora, mesmo em número inferior perante os milhares do inimigo sarraceno. Os episódios onde este intervém recordaram-me outros heróicos cavaleiros, que edificaram as memórias dos contos da minha adolescência ao imortalizarem figuras como “Ivanhoe”, “Robin Wood” e outros de outras távolas.
Aqui Herculano esboça o carácter universal da sua obra em clara influência de outros autores.
Na minha opinião, o romance de "Eurico o Godo", é uma grandiosa obra de proporções universais, pelo seu romantismo e alcance histórico, o que a torna num épico da envergadura dos “Lusíadas” de Camões que merece ser revisitada por todos nós e divulgada pelos mais jovens. Pessoalmente veio preencher um vazio da época pré-medieval compreendida entre a ocupação Romana da península e os primeiros feitos na construção da nossa nação Lusa, que tanta vez aqui foi evocada pela menção dos nobres guerreiros Lusitanos que ao lado dos godos, heroicamente combateram contra os árabes em indescritíveis batalhas.
(1)(capitão de 1000 homens na hierarquia militar Goda)
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