17/06/08

Crónica de Uma Morte Anunciada - Gabriel García Márquez

Esta novela, ou crónica, como é designada por Gabriel G. Márquez, é mais uma pequena amostra da talentosa escrita do Colombiano, e que pelo que me apercebo, foi o último degrau para chegar ao Nobel da literatura que a Academia lhe atribuiu em 1982.
A história desenrola-se num lugar do Caribe sul americano, onde Santiago Nasar, um jovem rico, solteiro e filho único, se vê como vítima de um ajuste de contas desencadeado por uma pueril declaração da irmã dos homicidas, feita após a sua atormentada noite de núpcias. Questões de honra e de virtude, como se pode adivinhar. Conforme sugere o título, trata-se então de um relato dos momentos que antecederam a morte constantemente anunciada, do jovem Santiago Nasar, entremeando avanços e recuos no tempo, encruzilhando assim os acontecimentos.
A narração é feita por alguém do povoado que conhecia Nasar e os restantes personagens, encetando mais tarde uma investigação acerca dos factos ocorridos que levaram ao fatal desfecho, permitindo uma melhor compreensão da psique das personagens e do móbil que as levava a agir de determinada forma.
A morte é, logo à partida, um dado adquirido, retirando-se qualquer suspense sobre o desconhecimento do final. Mas, o ritmo que marca o avanço da narração, intrincada entre o cepticismo da população e a lucidez de Nasar quanto à notícia antecipada que se espalhava como o vento acerca da sua morte, leva-nos por momentos a duvidar se esta em algum momento se iria consumar. Mas a morte ocorre, e da sua inevitabilidade vamos ficando certos quando vemos uma comunidade que possui tudo para a impedir, mas que nada acaba por fazer, remetendo-se ao fugaz encolher de ombros acompanhado do usual “...é uma patranha!”.
Mas até lá, hábil e talentosamente, o cronista vai espalhando em pequenas doses a sua magia e intriga, num cenário característico do Caribe sul americano com todas a cores e aromas derramados sob um sol abrasador e banhados pelo generoso rio, aparentemente a única via de ligação ao resto do mundo. Além disso o autor evoca, por mérito dos retratos às várias personagens, os costumes e valores herdados das sociedades dos países do sul da Europa fortemente influenciados pela excessiva religiosidade trazida para a América latina. Por outro lado, faz-nos também sentir que esta terra é uma nova terra, diferente da velha Europa, mostrando que este novo mundo é a pátria comum de várias raças e credos que convivem mutuamente. A prova disso é a origem muçulmana do próprio Nasar que vivia agora numa pequena comunidade árabe católica. Será certamente este o principal enfoque que G.G.M. quis retratar. Um povo ainda refém dos mesmos valores cujos avós lhes transmitiram, porém, à luz do sol deste mundo novo, tresandando ao exotismo destas comunidades cosmopolitas, surgem os desprendimentos das matrizes culturais e raciais primordiais, gerando individualmente conflitos interiores em reboliço de sentimentos, que colocam em dúvida os limites pré-concebidos entre o bem e o mal, entre a fraternidade e a obrigação.
Este conto é uma ficção, é certo, contudo apoia-se noutros contos e histórias de cariz popular que se vão perdendo ao longo do tempo, mas que por qualquer motivo se reúnem novamente, e neste caso pela mão genial de Gabo que com certeza cunhou esta bela história com vivências pessoais. E Gabo fê-lo de tal maneira que a descrição dos locais, a construção dos intervenientes, as relações entre si são tão intensas e possuem tanto de verosímil, que a minha mente enquanto leitor facilmente se iluminou e construiu ela também de forma tão real, as ruas da cidade, o molhe do cais, Santiago Nasar com o seu fato de linho branco a sair de casa, os irmãos Vicario de facas na mão com um brilho tão reluzente que quase nos atinge, fazendo-nos aproximar da fantasia desse pequeno universo. E são estas descrições, esta forma encantadora de escrever, é esta construção literária qualitativa que me cativa em G.G.M.
Este é um livro a recomendar aos amantes dos universos criados por Gabo. Apesar de ser de leitura rápida, convirá uma assimilação lenta para um bom proveito deste sumarento produto literário.

2 comentários:

Pedro disse...

De Márquez já li "Olhos de Cão Azul", uma colectânea de cntos. Muito denso, quase surreal, mas encerra uma grande lição. Embora ainda não seja um autor de eleição, sem dúvida alguma experimentarei outros livros dele, incluindo este (que já está cá em casa...).

Anónimo disse...

Tão antiga essa novela. Essa, o Ninguém escreve ao Coronel, Relato de um Náufrago e Cem Anos de Solidão, são o melhor que há de Gabo.
ZT