19/06/07

Breviário das Más Inclinações

A propósito deste post aqui, mais uma vez, à hora do café fiquei surpreendido com a sabedoria popular:

Lua nova trovejada
Trinta dias molhada


Posto isto, a altura é a indicada para lembrar o mais conhecido livro de José Riço Direitinho: Breviário das Más Inclinações, editado pela 1.ª vez em 1997 e que revelou um novo autor predisposto para o fantástico numa incursão no ideal popular.
Esta ficção é fruto desse investimento, tendo-se inspirada nuns escritos antigos que falam de um tal de José Risso, por coincidência de nome igual ao do autor. No entanto, a sua fama correu o norte de Portugal e a Galiza, tendo chegado aos nossos dias.
O livro é um extraordinário e rico breviário dos costumes e tradições populares, com a particularidade de roçar o “oculto”. O cenário é o da raia do norte português confinante com a “Galícia”, onde a narrativa discorre sobre as vidas das suas populações isoladas, por alturas da guerra civil espanhola.
Na minha opinião, estas páginas têm o dom de despertar o leitor para a existência de um Portugal profundo que subsistiu (e subsiste) por todo o território, vivendo ou sobrevivendo conforme os sucessivos governos pós-monarquia, o permitiam.
Pela falta de modernidade e abertura ao mundo, o conhecimento e sabedoria destas gentes provinha daquilo que a terra lhes dava, criando uma cultura anacrónica fundada naquelas raízes populares que não seguia o rumo do resto da Europa. É esse aspecto que o livro explora, ao trazer à luz personagens como José Risso, um típico português fura-vidas, que por herança do diabo ou d´outro tinha como artes engendrar receitas para a cura de todos os males. Como se não bastasse, conhecia todas as veredas e caminhos de contrabandistas que percorriam a região. As vivências e os saberes ainda hoje marcantes nas mais longínquas aldeias, são a essência daquilo que aqui é evocado e retratado, tanto pelas referências às mezinhas como às crenças, superstições, rezas e ladainhas que desbocavam da voz de Risso.
Pode-se pensar que a mera sobrevivência e um punhado de manha, fizeram dele um raiano esperto e respeitado, porém, era ao mesmo tempo um homem amaldiçoado. E aquela marca fatal com que nascera nas costas aparentando ser uma folha, que ficava ensanguentada nas aflições, era prova disso.

Por tantas passou, lutou e amargurou, que o homem morreu e o mito ficou.

Risso reúne e simboliza aquilo que as populações viveram e se tornaram, profundamente marcadas pela fome e pela miséria, encontrando alívio para as suas dúvidas na crença do sobrenatural que os antigos transmitiam como testemunho de geração em geração. Esta tendência natural era válida tanto para o lado de cá como para o do outro lado da fronteira, cujos resquícios perdurarão “ad eternum”. Afinal de contas, nós somos o produto do nosso passado.
Notas do romance:
A narrativa parte do dia do nascimento do personagem central, sobre o qual gira toda a trama, acabando no fundo, por ser a sua vida relatada em jeito biográfico, comprovada, no início de cada capítulo e quase em verso, por extractos dos ditos escritos que em linguagem arcaica resumem cada um dos episódios em que vamos entrar.
O contexto da história faz-nos recuar para os tempos das estradas de macadame, que atravessavam montes e vales para servir aldeias escondidas pelas serras, com os casarios amontoados e encimados pelas torres sineiras. Nas raias, trilhamos velhos percursos que só os contrabandistas percorriam
. Os contrabandistas e José Risso.
Nas povoações damos conta do seu dia-a-dia, das coscuvilhices, do pouco que havia, das ruas vazias, das casas por arranjar, da pastorícia e dos verdes lameiros. Que Risso tão bem conhecia.
Os episódios saltam das páginas como cerejas, recordam-nos as bucólicas e parcas vidas no Portugal adormecido, resultantes das políticas do estado. A permeio entram personagens como as professoras que "gostavam de meninos", e vinham dar aulas de burrico, ou o moleiro que demorou um dia de caminho para ir ao curandeiro. Risso estava presente em todas elas.
Dos montes, havia rumores de um lobo enorme que galgava toda a região a semear o temor com os seus uivos. Uma noite Risso abateu-o.
Certo dia, vindas da Galiza, fugidas à guerra, 3 espanholas fixaram-se na aldeia, e abriram uma daquelas casas para deleite dos homens da terra e das redondezas. Risso amantizou-se da mais velha.
Assim era, o Risso da raia.

4 comentários:

NLivros disse...

Só uma questão para complementar o meu comentário no blog:

Aonde é que desencantas pérolas destas?

Victor Figueiredo disse...

Foi algures aí na blogosfera, num comentário que alguém fez sobre engenheiros ou homens da ciência escritores, onde são referidos, a título de exemplo, Rómulo de Carvalho (António Gedeão), Jorge de Sena e o José Riço Direitinho. Deste último falou-se do livro das Más Inclinações cujo título não me era estranho, tal como a sua obra na colecção Finisterra da Asa.
Entretanto O Breviário foi reeditado há pouco tempo. Li-o há cerca de 2 meses. Que livro, que talento!

Eva Lima disse...

Não conheço nem o autor nem o livro, mas já me despertaste a vontade de o ler.

Victor Figueiredo disse...

Óptimo, ainda bem.
Na altura fizeram-me muitas recomendações. Entretanto li-o, e agora quem o recomenda sou eu.