15/10/07

Esteiros, Soeiro Pereira Gomes

Há obras imortais, que definem ´per si´ a excelência do autor. Esteiros de Soeiro Pereira Gomes, é disso exemplo, com publicação em 1941 e ilustração de Álvaro Cunhal.
Foi escrita num estilo realista – típico no autor - que põe a nu a condição social precária de um grupo de gaiatos ribatejanos, sem quaisquer dramatismos e sem qualquer manto que escamoteie a vida cruel de uma educação sem escola e de uma adolescência de árduo labor, cuja precisão impunha nos telhais e nos Esteiros do Tejo.
Denuncia, sem o querer, uma sociedade atroz, de costas voltadas para um povo que subsistia, como classe proletária, à qual esses rapazes reagiam com as armas que lhes estavam à mão, e que lhes alimentava a astúcia na mesma medida que a cólera; alguns estavam conscientes disso, contudo impotentes - a corrente da vida era tão forte como a do rio que segue somente num sentido.
Esta é com certeza uma história entre muitas outras, é a história contada da realidade de muitos que sobreviveram e pereceram aos Esteiros do rio e à constante agressão de uma sociedade sem dó e com uma autoridade senhorial.
Trata-se portanto, de um retrato pungente, simples como eram aquelas vidas, que os ia vencendo, fosse no rio, fosse na fábrica grande ou nos telhais do estio. Não há ironias pífias nem inócuas, truques ou grandes artimanhas narrativas. Contudo, foi marcada por um dos mecnismos mais sombrios da 2.ª república, e para que este actuasse bastou retratar o Tejo tal como ele era e a vida das suas gentes, para que ceifassem com a censura, a obra ao nascer, como quem manda por terra uma seara que cresce do chão, chão que gente humilde pisava. Repito indignado. Como se não bastasse o destino cruel e a fome dos miúdos, tinham que vir com a censura do estado novo, calar a voz de quem apenas com mérito literário, queria falar com o resto do mundo sobre os Esteiros do Ribatejo.
Hoje em dia, este livro figura na lista dos recomendados para o secundário, nota qualitativa da narrativa ímpar do realismo do autor. Os brilhantes diálogos entre os miúdos são pérolas literárias do neo-realismo português que me fazem lembrar a “Gândara” de Carlos de Oliveira; repescam modos de falar antigos, ditongos e calão desaparecido, costumes e gestos típicos da região na época, aqui reavivados e imortalizados.

Excertos:
«Maria do Bote abriu a porta, e tudo em casa lhe pareceu mais sombrio e nu. Apenas, sobre a cómoda carunchosa, o despertador alardeava brilho, mantinha a mesma cadência das horas que não vivia. A dona olhou-o, melancólica, como a um traste inútil; depois, em súbita resolução, pô-lo debaixo do xaile, e dirigiu-se ao escritório do Rodrigues.À entrada ainda hesitou. Mas o penhorista chegou-se logo com modos animosos.
- Faz favor de entrar. Um seu criado, minha senhora.-E esfregava, uma na outra, as mãos peganhentas. - Sr. Rodrigues. Eu trago aqui...»
pág. 126.
«A manhã é ainda um pressentimento, mas já no quartel o despertador anunciara o dia. Os valadores deixaram a tarimba, que não acalenta fadigas; tactearam as pás, ao canto; e, depois de enganarem as bocas com naco de pão mais duro que a tarimba, meteram-se ao esteiro.
- Vamos a isto antes que a maré suba.As pernas resvalaram no lodo até aos joelhos, e a humidade arrepiou-as.»
pág. 137.

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