01/07/06

As Invasões Bárbaras - o filme

Este filme vem na sequência de “O Declínio do Império Americano”, 1986 – do mesmo realizador e com as mesmas personagens. Contudo, o alvo é o mesmo, e o diagnóstico da saúde do sr. Socialismo e do sr. Capitalismo e outros ismos, deve ter piorado.
A história leva-nos ao Canadá francês, para conhecemos em fase terminal de cancro, um homem - Remy -, académico por natureza, outrora o bon vivant socialista de serviço da universidade. Conhecemos depois o seu filho - um corretor numa multi-nacional em Londres - mais liberal não se podia conceber. Um tipo que consegue arranjar 15 minutos por ano para estar com o pai.
É nesta relação pai-filho, esvaziada de laços, que o filme assenta para se desenvolver de forma inteligente, mordaz, subtil e sem ilusões, colocando na bagagem a crítica subjacente às réplicas do imperialismo americano, que grassam sem fronteiras, e copiosamente corrompem os indígenas.
Remy é internado pelo filho num hospital, sob os auspícios dos princípios a que sempre o jovem se opôs - corrupção para obter regalias e drogas que o afastam a realidade. Para o conseguir, o filho resvala para o sórdido mundo paralelo e, com os seus dólars, alcança tudo para garantir uma morte digna ao pai. Este, em agonia, em contradição às suas convicções também elas já débeis, acolhe essas condições, preferindo ignorar a sua proveniência. Nessa fase final da sua vida, de físico apoucado, restava ao professor fazer uma auto-análise com todos aqueles com quem de perto privou. Para satisfação de um moribundo, nada melhor que os velhos comparsas espalhados pelo mundo se reúnam uma última vez e voltem a conviver como nada se passasse, retratados por diálogos bem construídos, de fina ironia, que acompanha uma erudição que nos deixa pequenos, mas que educa e desperta consciências.
No espectador, as questões vão despontando à medida que o balanço de Remy avança: até onde deve um homem, no seu leito de morte? O julgamento do próximo; inclusivé o próprio filho que, por ele, regressou da Europa? As nossas ideologias; as nossas lutas; os nossos amores, cumpriram? O trigo, o joio. Qual o nosso e actual conceito do certo e errado? A Igreja, ou espectro dela que prevalece?! As drogas, numa perspectiva para além da legal. A eutanásia - uma das questões centrais. As ideologias onde conduziram as nações? A globalização aproxima ou não? A Internet, único elo que o liga ao barco da filha activista, à deriva no pacífico-sul...!
E os amigos! É o que sobra? E não sobra pouco, com eles somos felizes, o bom que existe em nós é reavivado e majorado. De novo sentimo-nos iguais a nós próprios, na recta final da passagem terrena, mesmo em cima de uma maca de hospital, com todos em redor brindando à amizade de “Bourgeois rouge” na mão.
Rimos e choramos, como numa valsa frenética, mas sob o riso, perante os grandiosos avanços do homem nos últimos séculos, a dúvida que fica é sobre quem são e quem foram os verdadeiros bárbaros ?
E o professor nas suas memórias ideológicas, alegres e nostálgicas, acercado das suas amantes que em tempos lhe fizeram as “mamadas” (não há sexo gratuito), continua a debitar registos tão admiráveis como monstruosos. Retive este que transcrevo:
«…les Espagnoles et les Portugais,… no passado, sem câmaras de gás nem bombas, conseguiram fazer desaparecer 150 milhões de índios na América latina…».
Em 110 minutos Denys Arcand consegue revisitar factos históricos, contemporâneos e outros, que ajudam a perceber e a melhor reflectir, sobre o produto que são as sociedades contemporâneas. A ampla visão com que o executa faz-nos entrar nos temas mais inquietantes da actualidade, para depois encadear lucidamente todas as suas ideias acompanhadas de um humor desconcertante.
A alegoria é perfeita. A geração combativa do professor, a dos finais dos anos 60, sucumbiu ao capitalismo da hipocrisia e a outros “valores”.
O filme As Invasões Bárbaras ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2004. Quase a par, quedaram-se os "Diários de Motocicleta", que também o mereciam e sobre ele na altura falei.
O Óscar da categoria de melhor filme estrangeiro é, para mim, o mais genuíno entre os demais atribuídos pela Academia, e raramente me engana.