os melhores portugueses
Numa feira do livro, no Porto, encontrei a 0,25€ (cinquenta mirréis-exactamente), um livrinho contendo um texto de Miguel Torga, datado de 9 de Junho de 1987, nas vésperas da passagem de Macau para a China.
Para Miguel Torga, é impossível falar de Macau sem se falar de Camões, o poeta dos Lusíadas que, segundo se diz desde há muito tempo, também terá passado pelo território de Macau.
Para Miguel Torga, é impossível falar de Macau sem se falar de Camões, o poeta dos Lusíadas que, segundo se diz desde há muito tempo, também terá passado pelo território de Macau.
A certa altura do texto, Torga, a propósito de uma remota vila de Trás-os Montes que clamava, ela também, ser a terra natal de Luís Vaz de Camões, refere o seguinte, parcialmente transcrito, com uma lucidez extraordinária:
«E afirma-o com veracidade. Quem tão genialmente deu expressão à pátria, tem o berço em cada seu recanto. E, quando falo de Portugal, falo das várias partes do globo por onde a sua exiguidade se repartiu através da língua, da religião, dos usos e costumes, da cultura, numa palavra. Sim, Camões esteve aqui e é daqui, porque aqui chegou o espírito de todo um povo que, como ninguém, consubstancia na vida e na obra, a legitimar-nos o impulso errático, a curiosidade, a ousadia, a tenacidade, a sabedoria e as ambições na América, na África, na Ásia e na Oceania. Génio ímpar que o mundo memoriza e honra mas não conhece, a nossa própria pedagogia caseira no-lo ensinou, e creio que ensina ainda, erradamente. Na escola do meu tempo, d-Os Lusíadas aprendia-se tudo, menos o que verdadeiramente importava. Os mestres de então como que porfiavam em os tornar odiosos à nossa compreensão e sensibilidade juvenis. Para além da gramática e da genealogia das ninfas, nada nos diziam da beleza sem par da poesia que faísca a cada passo dos trâmites da narrativa, da erudição que subjaz a cada estrofe, da imaginação que ilumina cada episódio e o emblemiza, e, sobretudo, da significação universal da obra, a mais actual e objectiva epopeia de quantas se conhecem. A história mental da humanidade regista outras igualmente famosas.
A de Gilgamesh, a Ilíada, a Odisseia, a Eneida, e a própria Divina Comédia, que é uma epopeia de almas. Mas nenhuma como Os Lusíadas cantou a natureza com tanta naturalidade e flagrância, exprimiu o homem tão de acordo com o entendimento que ele hoje tem de si mesmo, e celebrou com igual justiça e perenidade um esforço cibilizacional clectivo. Tudo se encontra nesse prodigioso relato da insatisfação moderna a vencer as trevas da ignorância, a arredondar a concepção do mundo e a antever-lhe a harmonia futura. O homem é, finalmente, não mais um adorador limitado, mas um interrogador ilimitado. Duvida, congemina, verifica. O próprio poeta, em vários passos da obra, confirma esse vezo de uma mentalidade nova. (A verdade que eu canto, nua e crua, Vence toda a grandíqua escritura.) Ou ainda (Se os grandes filósofos, que andaram Tantas terras por ver segredos delas, As maravilhas que eu passei, passaram, A tão diversos ventos dando a velas, Que grandes escrituras que deixaram! Que influição de sinos e de estrelas, Que estranhezas, que grandes qualidades! E tudo sem mentir, puras verdades.)
A ciência do passado, aceite sem discussão à sombra da autoridade, é posta agora em causa, em nome da observação directa dos fenómenos. (Eu o vi certamente - e não presumo Que a vista me enganava).
O poema é ao mesmo tempo um hino de exaltação nacional e uma exegese inexorável da realidade. Ainda hoje impressiona o verismo com que a tromba marítima ou o escorbuto nos são descritos no canto quinto.
Gesta asombrosa dum povo temerário que abriu de par em par as evasivas portas ogivais da Idade Média, fez entrar por elas todo o sol promissor do Renascimento e planetarizou pela primeira vez o espírito, só poderia ter sido perpetuada por quem andou pelas mesmas rotas, consciente de quanta audácia o feito necessitara, de quantos sacifícios custara a da sua cósmica dimensão. Homero e Virgílio cantaram semi-deuses que cometem com forças sobrenaturais e num tempo mítico os prodígios relatados. Aquiles, Ulisses, Eneias não passam de meras ficções. Descendem de pais fabulosos, descem aos Infernos, são invulneráveis. Nenhum mal irremediável os ameaça, aconteça o que acontecer. Títeres nas mãos de Júpiter, de Vénus, de Apolo ou de qualquer outra potestade, acabavam por cumprir um destino implacável e monótono de predeterminados. Com um pé no céu e outro na terra, nem têm a unidade incontingente dos celestes, nem a complexidade contingente dos terrestres. Levam sempre a melhor sobre as forças adversas, e não há qualquer inesperado no seu comportamento.
Camões, pelo contrário, embora recorra ainda à providência conflituosa de um Olimpo desavindo, em obediência aos cânones clássicos que lhe serviram de modelo - e essa transigência é hoje a parte mais frágil do poema -, pinta indivíduos coetâneos em acção, que se chamam Gamas, Albuquerques, Castros, Leonardos ou Velosos e actuam por conta própria. Seres vivos, psicologicamente matizados, a braços com o seu destino singular, que assumem no corpo e na alma as consequências das façanhas que empreendem.
...
Esse eterno correio do mundo, que se miscigena indistintamente com os indígenas hospitaleiros, sejam brancos, negros, ou amarelos, sem se descaracterizar, que desconcerta a razão de sociólogos e se dá bem em todas as latitudes, tem sempre o mesmo nome, mesmo quando não leu sequer as redondilhas Sobolos rios que vão: chama-se Luís Vaz de Camões.
Ser um português acabado é ser ele, pioneiro, bandeirante, apóstolo, traficante, visionário, namorado e poeta. As nações elegem ciosamente os seus filhos exemplares, e honram-nos como tais. A Inglaterra tem Shakespeare, a Itália tem Dante, a Espanha tem Cervantes. Todos encarnam, respectivamente, o génio da pátria que os viu nascer. Mas nenhum iguala Camões nesse capítulo. Nenhum, como ele, testemunha tão vincadamente os estigmas da sua raça, no melhor e no pior.»
«E afirma-o com veracidade. Quem tão genialmente deu expressão à pátria, tem o berço em cada seu recanto. E, quando falo de Portugal, falo das várias partes do globo por onde a sua exiguidade se repartiu através da língua, da religião, dos usos e costumes, da cultura, numa palavra. Sim, Camões esteve aqui e é daqui, porque aqui chegou o espírito de todo um povo que, como ninguém, consubstancia na vida e na obra, a legitimar-nos o impulso errático, a curiosidade, a ousadia, a tenacidade, a sabedoria e as ambições na América, na África, na Ásia e na Oceania. Génio ímpar que o mundo memoriza e honra mas não conhece, a nossa própria pedagogia caseira no-lo ensinou, e creio que ensina ainda, erradamente. Na escola do meu tempo, d-Os Lusíadas aprendia-se tudo, menos o que verdadeiramente importava. Os mestres de então como que porfiavam em os tornar odiosos à nossa compreensão e sensibilidade juvenis. Para além da gramática e da genealogia das ninfas, nada nos diziam da beleza sem par da poesia que faísca a cada passo dos trâmites da narrativa, da erudição que subjaz a cada estrofe, da imaginação que ilumina cada episódio e o emblemiza, e, sobretudo, da significação universal da obra, a mais actual e objectiva epopeia de quantas se conhecem. A história mental da humanidade regista outras igualmente famosas.
A de Gilgamesh, a Ilíada, a Odisseia, a Eneida, e a própria Divina Comédia, que é uma epopeia de almas. Mas nenhuma como Os Lusíadas cantou a natureza com tanta naturalidade e flagrância, exprimiu o homem tão de acordo com o entendimento que ele hoje tem de si mesmo, e celebrou com igual justiça e perenidade um esforço cibilizacional clectivo. Tudo se encontra nesse prodigioso relato da insatisfação moderna a vencer as trevas da ignorância, a arredondar a concepção do mundo e a antever-lhe a harmonia futura. O homem é, finalmente, não mais um adorador limitado, mas um interrogador ilimitado. Duvida, congemina, verifica. O próprio poeta, em vários passos da obra, confirma esse vezo de uma mentalidade nova. (A verdade que eu canto, nua e crua, Vence toda a grandíqua escritura.) Ou ainda (Se os grandes filósofos, que andaram Tantas terras por ver segredos delas, As maravilhas que eu passei, passaram, A tão diversos ventos dando a velas, Que grandes escrituras que deixaram! Que influição de sinos e de estrelas, Que estranhezas, que grandes qualidades! E tudo sem mentir, puras verdades.)
A ciência do passado, aceite sem discussão à sombra da autoridade, é posta agora em causa, em nome da observação directa dos fenómenos. (Eu o vi certamente - e não presumo Que a vista me enganava).
O poema é ao mesmo tempo um hino de exaltação nacional e uma exegese inexorável da realidade. Ainda hoje impressiona o verismo com que a tromba marítima ou o escorbuto nos são descritos no canto quinto.
Gesta asombrosa dum povo temerário que abriu de par em par as evasivas portas ogivais da Idade Média, fez entrar por elas todo o sol promissor do Renascimento e planetarizou pela primeira vez o espírito, só poderia ter sido perpetuada por quem andou pelas mesmas rotas, consciente de quanta audácia o feito necessitara, de quantos sacifícios custara a da sua cósmica dimensão. Homero e Virgílio cantaram semi-deuses que cometem com forças sobrenaturais e num tempo mítico os prodígios relatados. Aquiles, Ulisses, Eneias não passam de meras ficções. Descendem de pais fabulosos, descem aos Infernos, são invulneráveis. Nenhum mal irremediável os ameaça, aconteça o que acontecer. Títeres nas mãos de Júpiter, de Vénus, de Apolo ou de qualquer outra potestade, acabavam por cumprir um destino implacável e monótono de predeterminados. Com um pé no céu e outro na terra, nem têm a unidade incontingente dos celestes, nem a complexidade contingente dos terrestres. Levam sempre a melhor sobre as forças adversas, e não há qualquer inesperado no seu comportamento.
Camões, pelo contrário, embora recorra ainda à providência conflituosa de um Olimpo desavindo, em obediência aos cânones clássicos que lhe serviram de modelo - e essa transigência é hoje a parte mais frágil do poema -, pinta indivíduos coetâneos em acção, que se chamam Gamas, Albuquerques, Castros, Leonardos ou Velosos e actuam por conta própria. Seres vivos, psicologicamente matizados, a braços com o seu destino singular, que assumem no corpo e na alma as consequências das façanhas que empreendem.
...
Esse eterno correio do mundo, que se miscigena indistintamente com os indígenas hospitaleiros, sejam brancos, negros, ou amarelos, sem se descaracterizar, que desconcerta a razão de sociólogos e se dá bem em todas as latitudes, tem sempre o mesmo nome, mesmo quando não leu sequer as redondilhas Sobolos rios que vão: chama-se Luís Vaz de Camões.
Ser um português acabado é ser ele, pioneiro, bandeirante, apóstolo, traficante, visionário, namorado e poeta. As nações elegem ciosamente os seus filhos exemplares, e honram-nos como tais. A Inglaterra tem Shakespeare, a Itália tem Dante, a Espanha tem Cervantes. Todos encarnam, respectivamente, o génio da pátria que os viu nascer. Mas nenhum iguala Camões nesse capítulo. Nenhum, como ele, testemunha tão vincadamente os estigmas da sua raça, no melhor e no pior.»
A par de Camões, D. João II e o Marquês de Pombal, são os meus eleitos.
3 comentários:
..."datado de 9 de Junho de 1987, nas vésperas da passagem de Macau para a China."
Uns anos depois, não?
A passagem do território de Macau para a China, efectivou-se no último mês do último ano do século passado. Ainda Jorge Sampaio era Presidente da República Portuguesa.
Ao olhar para uma vida como a minha, pois provavelmente não irei durar muito mais que 60 anos, de facto, 12 anos correspondem a cerca de 20% do meu tempo “útil”. Nessa perspectiva, essa parcela é significativa.
Todavia, tendo sido sujeito o território de Macau ao “domínio” português, tantos séculos, esse espaço de tempo significa uma parcela tão pequena, que me levou a assumir o ano de 1987, inserido no que considero as “vésperas” da passagem da administração de Macau, de um país para o outro. Mais reforçada esta ideia fica, quando se recorda que o assunto do processo de transição, foi colocado em discussão muitos anos antes, paralelamente ao de Hong Kong que já tinha sido iniciado com os ingleses. Em 1987, o mesmo processo foi acelerado com um pedido da China a Portugal.
Imbuído neste pensamento, e tendo o livrinho muito contribuído também, visto que tinha acabado de ler, urdi, com maior ou menor consciência sobre as asneiras que poderiam sair, as frases que serviram de introdução ao belíssimo texto – outra coisa não se podia esperar - de Miguel Torga. E esse texto, é o que verdadeiramente aqui interessa.
Já agora, um à parte: “Os Comedores de Pérolas” – João Aguiar. Livro recomendado que relata o período de Macau antes da “devolução”, que com certeza conhecerá, no âmbito da triologia do autor sobre este pedaço de terra do antigo extremo português.
Quanto ao termo “vésperas”, podia bem ser substituído por “próximo da entrega de…”. Atente-se ao significado da palavra vésperas: «época ou tempo que antecede um certo acontecimento»
Escolhas muito válidas! Só é pena que as nossas escolhas sejam de figuras do passado, o que reflecte um fraco presente...
Abraço!
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