14/06/06

Hereges, ma non troppo


Aydano Roriz é colaborador em revistas na cidade de S. Paulo desde os anos 70. É também proprietário de uma editora livreira no Brasil. Aliando a sua capacidade financeira e o conhecimento do meio literário brasileiro a uma paixão confessa pela história dos 2 países - Portugal e Brasil -, Aydano investiu forte na pesquisa histórica do nascimento do do seu país, realizando viagens à europa para conseguir o capital de conhecimento que o levou a escrever 3 livros sobre a época: O Desejado, O Fundador e O Livro dos Hereges...
É sempre de louvar um projecto desta natureza que incide sobre o glorioso e dramático período que vai até Alcacér Quibir, apesar de haver, como se sabe, os herméticos trabalhos académicos acessíveis e estimulantes apenas para alguns.
A escrita do brasileiro urdida com arte literária, é simples e objectiva, denotando uma agradável erudição, contudo não encanta como Jorge Amado ou Eça de Queiroz. O_o
Demonstrando um surpreendente conhecimento sobre a época, transparece sobretudo o objectivo de cumprir estes romances, perpetuando estas páginas da história em ficções ao alcance do grande público pelo envolvimento a que é sujeito o leitor, tanto mais o português, que naturalmente reconhece no escritor interesse e dedicação ao nosso passado, romanceando a história comum aos 2 países e reconstruindo locais e personagens com a sua ficção, dando-lhes mais vida do que aquela que conhecemos, como foi a surpreendente personagem do P.e António Vieira que intervém no enredo.
O livro dos Hereges parte então, de uma súmula acerca da tentativa da conquista do Brasil pelos holandeses, revelando um árduo trabalho que retrata a traços fortes a cidade de Salvador em 1624.
A capital da colónia era ocupada por uma comunidade multi-nacional e governada por Diogo de Mendonça, representante d´El Rey D. Filipe II de Espanha, descendente das casas reais centro-europeias e que galgou fronteiras e anexou Portugal à Espanha.
Filipe II, do alto do maior império do mundo, detinha entre outros títulos alguns que lhe conferiam posse sobre as 17 províncias dos países-baixos, porém, alguns batávios das províncias do norte onde se incluía a Holanda, não se queriam subjugar à coroa espanhola filipina de inspiração católica sob o jugo papal em Roma. Estes povos que conquistaram a sua nação ao mar, contaram sempre com a ajuda multi-étnica e de vários credos para a árdua tarefa da construção de diques, canais, e drenagem de solos. Como tal, sempre toleraram que outros povos consigo convivessem atraindo inclusive minorias perseguidas, o que lhes permitiu liberalizar “precocemente” o pensamento mas sobretudo a atitude perante a vida.
Como se adivinha, por concepção, eram contra a escravatura dos negros africanos e maioritariamente protestantes, não reconheciam a “antiga” igreja católica nem o Papa como seu expoente máximo. Além disso, estando aqueles territórios na encruzilhada das rotas da Inglaterra e dos países nórdicos, funcionavam como porta para o mar báltico em entreposto comercial, onde era feita a troca de muitos produtos o que lhes conferia uma natural habilidade para o comércio.
Sendo o país jovem era por isso muito ambicioso, negando a prestação de impostos aos espanhóis e revoltoso quanto à inquisição que queimava hereges na fogueira. Essa ambição unida ao forte desejo de repressão virou-se para o monopólio ibérico do mercado das índias orientais e ocidentais. Depois da bem sucedida VOC (Companhia das Índias Orientais) construída com capitais privados (vejam só!…), que em grande parte retirou a Portugal o domínio sobre as rotas orientais, formou-se então a IWC (Companhia das Índias Ocidentais) com o objectivo de controlar o monopólio nas costas africanas e americanas, pela conquista de cidades estratégicas incluídas nessas rotas. Depois de fundar Nova Amesterdão (actual Nova Iorque), Salvador da Bahia no Brasil, pelo seu açúcar e pela oportunidade do aparente abandono, tornou-se na altura uma das mais apetecidas colónias, enviando em 1624 para o seu controle, 27 navios da IWC surpreendendo portugueses e espanhóis.
À frente da expedição estava Van Dorth, um ambicioso fidalgo holandês cujo desígnio era alimentado por um lugar na corte holandesa, a conseguir por via do amor a D. Louise, a endiabrada filha do único e legítimo pretendente ao trono português: D. Emanuel, filho do falecido D. António, Prior do Crato, exilado em Delft na aliada Holanda.
Durante a ocupação holandesa, para além da eficiência com que foi executado o plano de ataque a Salvador defendida por 3 fortes, algo mais me chamou à atenção ou não fossem os holandeses engenhosos no planeamento urbano. Com o intuito de trazer progresso àquelas gentes, a cidade sofreu beneficiações importantes ao nível da pavimentação de ruas, dos acessos à parte alta, da higiene pública e no domínio da defesa. O autor sublinha estas melhorias pelos diálogos tidos entre os novos ocupantes durante o planeamento e na execução, levando-nos a crer que ao longo de anos a fio após a fundação portuguesa, a perspectiva com que se olhava para esta colónia nunca fora alterada, acarretando os inconvenientes do conservadorismo ao qual estava inerente a fé católica e o espírito missionário.
Todavia, o novo ambiente asséptico da capital da Bahia e o ordenamento disciplinador imposto à lei da forca, não foi bem recebido pela populaça que agora, por decreto governamental, tinha como pares os negros que outrora foram seus escravos e serviçais, e espalhada a notícia da invasão dos hereges a outras capitanias, como a de Pernambuco, logo trataram de levar a má nova aos ouvidos do que sobrava da corte portuguesa. De seguida, em aprovação e colaboração da reinante corte filipina, sai de Portugal uma frota ibérica em socorro de Salvador, capital da Bahia e sede do governo do Brasil.
Aqui termina este livro. Pena foi esta decisão de Aydano, ao dividir por 2 livros a resolução da batalha pela posse colonial, que começou neste primeiro título como uma pequena expansão holandesa sobre aquele celeiro desamparado na América do Sul, por entre jogadas militares, intrigas amorosas, sexo, jogos de volúpia e sede de poder dos caciques locais. Celeiro esse nunca imaginado como hipotético alvo do interesse de portugueses, espanhóis e neerlandeses, com 16500 homens e 107 navios das 3 nações, a caminho da Bahia agora governada pelo herege Van Dorth, e com desfecho agendado para o próximo livro “A Jornada dos Vassalos” (a confirmar). Isto é que é a democracia na literatura, o prazer pinga-se aos poucos!... Que se dane são mais uns 16,00€!...
Fica como nota a reter, e em ordem oposta a este final, um excerto do prefácio à edição portuguesa escrito pelo ex-prefeito de Salvador, Mário Kertész: “…imaginar o que seria do Brasil se fôssemos colonizados pelos hereges.” Agora pergunto eu em tom de reposta: Será que o mundo não ficaria privado da riqueza multi-cultural daquelas paragens, da figura risonha das baianas e suas grandes saias rodadas, das neguinhas, das roças, da fonte de onde jorrou o samba, do Brasil das fazendas maravilhosamente escrito por J. Amado, da delícia de ouvir um: “Qué dizê, entonces sinhô, qui num vô mais trabaiá?”; para passar a ouvir um "Oprotten!" em vez de um "dane-se!"

1 comentário:

Anónimo disse...

That's a great story. Waiting for more. » » »